Desligar-se da matéria para liberar o sentimento. A ancestralidade do sofrimento do povo preto vem à tona na voz do guitarrista, cantor e compositor Gilber T, que disponibilizou, ontem, aqui, a sua interpretação para "Sinnerman", canção de Nina Simone que virou um dos símbolos-marco da época dos conflitos sobre os direitos civis nos Estados Unidos.
"Coincidentemente", nas últimas semanas, com a morte de George Floyd e a marcha mundial do Lives Black Matters (vidas negras importam!), muita gente lembrou da música. Com Gilber não foi diferente:
"Coincidentemente", nas últimas semanas, com a morte de George Floyd e a marcha mundial do Lives Black Matters (vidas negras importam!), muita gente lembrou da música. Com Gilber não foi diferente:
"Minha busca sempre foi a profundidade das coisas e, quando eu não as conheço, preciso assimilá-las, até para não retomá-las, se for este o caso. Sinceramente, não gravei a canção pelo momento. O que está rolando eu já canto em minhas composições e me cerco de iguais que contestam e protestam pelas mesmas coisas. Sinnerman foi uma feliz coincidência porque vidas negras importam - e muito!".
Imagem: Facebook |
Confira o clipe:
Tudo começou quando, num dado momento, com a sugestão do amigo e produtor Tomás Magno, o músico vislumbrou regravar a obra; extremamente significativa, neste momento histórico de pandemia pelo novo coronavírus e da luta contra o racismo, nos Estados Unidos e em todo o mundo.
Em junho de 2019, Gilber já estava com a estrutura da canção bem adiantada para gravar. À ocasião, ele havia convidado o baterista Robson Riva (Seletores de Frequência) para fazer um registro na Tomba Records, em Niterói (RJ). Amarrados à gravação de piano, guitarras, contrabaixos e synth - que já havia feito em casa - o artista procurou interpretar o tema "sem a vaidade de induzir sentimentos alheios, através de maneirismos ou alguma verdade que não fosse a dele":
Maurício Garcia, Gillber e Robson Riva. Foto: Facebook |
"A voz foi a parte mais difícil, porque a Nina tomava todas as músicas para ela e, aos meus ouvidos, todas as versões dela são definitivas, impecáveis e clássicas. Eu queria o meu tom e andamento; respeitar as minhas próprias limitações. Preparei-me meses, não só para decorar a letra. Era preciso assimilá-la de tal forma a não pensar nela, mas, sim, no seu real significado".
A intenção era lançar, naquele final de 2019, entre o Natal e o Ano Novo, como uma forma de "exorcizar tantos acontecimentos estranhos e um sentimento de impotência ante a intolerância e toda sorte de absurdos". Adentramos 2020 e se passaram alguns meses:
"Lembro de um último show com o Bnegão e os Seletores de Frequência, em São Paulo. Tocávamos as músicas do Sítio do Pica Pau Amarelo. Foi muito bonito. Ao término, já era anunciada a quarentena, que se iniciaria efetivamente em todo o país, por tempo indeterminado, devido à propagação da Covid-19. O simples ato de ligar a TV para assistir um noticiário me deixava muito desiludido. Mas não foi daquela vez que uma espécie de tristeza e apatia me venceu".
No lançamento de "Brodagens", de Pedro de Luna. Foto: Facebook. |
Sensação que acomete muita gente do meio musical durante a quarentena, muitas vezes o fato de estar com todo o tempo do mundo para produzir, com todos os equipamentos disponíveis, não significa, necessariamente, tesão para fazer qualquer coisa:
"Incrivelmente, amanhecia e eu sequer conseguia olhar para um instrumento. Rolava uma apatia e um vazio criativo, que me assolou durante semanas. Quando eu achava que ia dar, pintava a notícia de que alguém próximo perdeu a vida pela Covid".
Numa manhã, Gilber ligou para a mãe. À ocasião, conversavam sobre o privilégio de poder estar em casa, mantendo a quarentena, enquanto profissionais de saúde não só arriscavam suas vidas, mas eram submetidos à fúria de negacionitas:
"Daí, ela me falou: 'você viu o que aconteceu com aquele menino? Que coisa horrível!'. Era sobre a morte do menino João Pedro, no complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ). Eu já começava a registrar algumas coisas, mas, naquele momento, fui da tristeza profunda à vontade de gritar algo; a versão que tinha quase pronta me retornou como o grito que meu peito queria por para fora. Retornei à canção com o Bruno Marcus fazendo a mixagem e todas as trocas, feitas remotamente, em nossas casas".
Com o amigo - também músico - Mário Travassos, falecido em 2017 |
O sentimento de Gilber em relação à Sinnerman é espiritual. Trata-se de uma canção que atravessou séculos, primeiramente sendo cantada por escravos e, depois, assimilada e absorvida pelo gospel norte-americano, como uma música de expurgo:
"Em minha mente, foi uma forma de fazer minha mea culpa de pecador convicto - de alguma forma. Precisamos enxergar o quão falhamos como pessoas, sendo intransigentes, vivendo privilégios para salvar a própria pele, sem dar a devida importância a quem só quer viver e fazer viver, mesmo com tudo indo contra".
Quem é Gilber T?
Com três álbuns gravados pela Tomba Records ("Eu não vou morrer hoje", de 2010; "Dia incrível", de 2014; e "Contradições", de 2016), Gilber T vem da efervescente cena underground de São Gonçalo e Niterói dos anos 1990, época em que tocou na banda Tornado, de hardcore/rap (crossover):
"Sempre cultivei carinho e respeito pelas cenas rock e hip hop".
Em 2016, o jornalista e escritor Pedro De Luna lançou o livro "Brodagens", que Gilber não considera uma biografia:
"Aceitei cumprir o papel de fio condutor, para falar de uma cena frutífera de artistas e bandas dos anos 90. Achei algo muito importante, porque a obra fala de meninos e meninas que botavam a mão na massa numa época sem internet. Era tudo presencial. Compartilhava-se música em trocas e cópias de fitas k7, informação em revistas e fanzines (venho de longe rs !). Então, não é possível, para mim, falar ou fazer algum trabalho artístico que não seja para provocar, através do estranhamento ou no simples impulso de transmitir amor numa canção tradicional como Sinnerman".
Sinnerman (Nina Simone) - Download grátis: https://gilber-t.bandcamp.com/track/sinnerman
Ficha técnica ( Áudio):
Vocal, guitarra, sintetizador, contrabaixo e arranjo por Gilber T.
Piano e Backing Vocal: B Brecht.
Bateria: Robson Riva.
Gravado e mixado entre 2019 e 2020 na Tomba Records e na T' House.
Produzido por B Brecht e Gilber T
Masterizado por Seu Cris no Estúdio La Cueva.
Piano e Backing Vocal: B Brecht.
Bateria: Robson Riva.
Gravado e mixado entre 2019 e 2020 na Tomba Records e na T' House.
Produzido por B Brecht e Gilber T
Masterizado por Seu Cris no Estúdio La Cueva.
Ficha técnica ( Vídeo):
Direção, câmera e ator: Rabu Gonzales.
Câmera: Isabel Valente.
Câmera: Isabel Valente.
Ai, gostei um monte!
ResponderExcluir